A 12 dias das urnas do 2º turno, e somente depois de escancarada a omissão, o tucano José Serra lançou seu programa de governo.
O evento entre amigos, em uma livraria em SP, foi quase um programa de lazer tucano, uma encenação política para ser filmada e tapar o buraco mais corrosivo de uma propaganda eleitoral:
a credibilidade.
Em meio ao contravapor das pesquisas, o tucano enfrenta um desgaste de fundo. Quanto mais se expõe, mais se configura o teor de uma trajetória em que as dissimulações se sucedem, como as cascas de uma cebola.
Essa é a grande dificuldade dos seus marqueteiros: hoje o tucano compõe aos olhos da população um personagem cada vez mais desconectado de sua fala; as atitudes ecoam mais alto do que a voz e as promessas.
O acúmulo tende a consolidar uma imagem que se move de forma autônoma, à revelia do arsenal publicitário.
Mudar isso é como enxugar o chão com a torneira aberta.
Carrega-se na maquiagem aqui, arruma-se um beijo inverossímil ali. Em seguida, a realidade irrompe como um vento inoportuno a sabotar o controle do incêndio.
O 'progressista', descobre-se mais adiante, teve atuação regressiva nas votações relativas ao direito do trabalhador, segundo levantamento do DIAP.
O 'desenvolvimentista', soube-se de fonte insuspeita, foi um dos mais empenhados defensores das grandes privatizações do ciclo tucano, caso da Vale do Rio Doce, por exemplo. Testemunho: FHC.
O propalado 'arrojo administrativo' reduz-se a promessa de galinha velha: cacareja mas não bota. Juntos, Serra/Kassab completaram oito anos de um condomínio administrativo que objetivamente destratou SP; agora recolhe o saldo de uma rejeição estrondosa: 45% da cidade reprova a gestão consorciada.
No episódio mais recente, do 'kit anti-homofóbico, esfarelam-se as credenciais do liberal, para emergir o oportunista da intolerância, que troca votos a qualquer preço.
Depois de alvejar a iniciativa do MEC, Serra foi obrigado a admitir, desmascarado mais uma vez: em 2009, quando governador, distribuiu material muito semelhante ao professorado estadual de SP.
A semelhança é compreensível: o material nos dois casos foi produzido pela mesma instituição, a ONG Ecos.
Palavras de um dos integrantes da equipe que participou do projeto: "A Ecos sempre trabalhou na gestão do Serra; ele está cuspindo no pote que comeu".
O material que fizemos para o MEC tem 80% do material do Estado de São Paulo. É um absurdo se utilizar do preconceito para ganhar voto" (Toni Reis, presidente da ABGLT).
Avulta nesse episódio a caricatural disposição de Serra para atacar o programa de Serra, sem qualquer pudor.
Compare o tucano de agora, agarrado ao pastor Malafaia, com esse outro, que tomou as seguintes medidas, lembradas por Antonio Lassance, colunista de Carta Maior:
a) em 2005, ele criou a Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual em São Paulo; depois, instituiu a Comissão a Comissão Processante Especial para apuração de atos Discriminatórios a que se refere a Lei n° 10.948/2001, destinada a receber, analisar e mandar punir atos anti-homofóbicos;
b) também em 2005, Serra criou o Conselho Municipal em Atenção à Diversidade Sexual e o Centro de Referência e Combate à Homofobia;
c) em 2006, criou o GRADI – Grupo de Repressão a Delitos de Intolerância a DECRADI – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, para o controle e repressão dos grupos homofóbicos.
Em resumo, quando o interesse era disputar o espaço LGBT com a petista Marta Suplicy, Serra não criou apenas um kit anti-homofobia, mas armou um elogiável arsenal da tolerância em SP.
Agora, dá guinada na direção oposta e salta para o colo dos malafaias, supostamente puxadores do voto evangélico.
O evento tardio desta 2ª feira em torno do 'programa' para a cidade ressente-se desse vício congênito à natureza política de Serra: a simulação.
O que se divulgou foi um adereço de mão da fantasia eleitoral, no qual nem o candidato acredita.
Passa-se ao largo da oportunidade preciosa de exercitar a discussão democrática da cidade com os eleitores.
Não há rigor técnico algum na rudimentar listagem tardia de propostas mal-ajambradas. O que é feito para não valer pode elidir metas, omitir cronogramas e abstrair custos.
Em resumo, prescindir dos requisitos que lhe dariam veracidade e transparência compatível com o acompanhamento democrático pela cidadania.
O simulacro do conjunto foi resumido na descrição de um item por insuspeita fonte: "Em um dos poucos momentos em que dedicou sua fala às próprias propostas, Serra lembrou a promessa de construir 30 AMAs (Assistência Médica Ambulatorial)".
(...) "Mas não a ponto de detalhar onde vamos fazer..." (ressalvou o tucano). "Isso seria impossível" (UOL, 16-10).
O modelar descompromisso se repete em outros tiros a esmo, como a promessa de implantar '30 parques' na cidade (onde? como?com que verba?); ou instalar mais cinco mil novos pontos de luz ou ainda a etérea menção uma deficiência escandalosa da gestão de seu apadrinhado, que não dedicou a ela um centímetro adicional de asfalto:
'expandir a rede de corredores de ônibus'. Assim, em quatro palavras, desincumbe-se o tucano da grave distopia do transporte em São Paulo, como se fosse algo tangencial, passível de tratamento genérico e ligeiro.
Vai por aí o seu crepuscular 'programa de governo'.
O conjunto exala o peso e a contundência de uma bolinha de papel eleitoral. Mais que isso, reforça percepção que se calcifica progresivamente: Serra é o principal testemunho contra Serra.
A postura professoral ancorada em boutades é quase ofensiva; a soberba incontrolável das sobrancelhas em pinça denuncia a impaciência de quem ouve por obrigação.
Quando tenta transparecer humildade, o tucano exala condescendência; o tom do discurso é sempre o mais revelador: ao tentar ser simpático é notório que está sendo falso.
O anti-sindicalismo udenista de Serra explode ao primeiro conflito, assim como o recorte antidemocrático irrompe à primeira pergunta de jornalista não embarcado na vassalagem midiática que o sustenta.
O higienismo social de sua visão sequer é dissimulado --e olha que estamos falando de um dissimulador experimentado.
É difícil demover as consequências eleitorais dessa sedimentação ancorada na percepção cotidiana da cidade e na saturação institntiva até diante das dissimulações rotas, das convicções esfarrapadas e do vale tudo das conveniências.
São Paulo é o grande bunker logístico do conservadorismo brasileiro.
A rejeição a um dos principais quadros desse aparato precisa acumular muito vapor na fornalha para romper uma blindagem arrematada com a solda dupla do jornalismo cúmplice.
O maior trunfo de Haddad hoje é esse discernimento em curso na opinião pública: Serra é impermeável a qualquer valor ou compromisso que não atenda ao seu exclusivo interesse pessoal.
No seu arquivo biográfico, o interesse da população ocupa olugar da prateleira subalterna. E essa hierarquia se reafirma na campanha municipal de 2012.
SAUL LEBLON
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