Chupinhado do SARAIVA
Adeus também foi feito pra se dizer
Fernando Henrique Cardoso foi um presidente da
República limítrofe, transformado, quase sem luta, em uma marionete das elites
mais violentas e atrasadas do país.
Era uma vistosa autoridade entronizada no Palácio do
Planalto, cheia de diplomas e títulos honoris causa, mas condenada a ser puxada
nos arreios por Antonio Carlos Magalhães e aquela sua entourage sinistra, cruel
e sorridente, colocada, bem colocada, nas engrenagens do Estado.
Eleito nas asas do Plano Real – idealizado,
elaborado e colocado em prática pelo presidente Itamar Franco –, FHC
notabilizou-se, no fim das contas, por ter sido co-partícipe do desmonte
aleatório e irrecuperável desse mesmo Estado brasileiro, ao qual tratou com
desprezo intelectual, para não dizer vilania, a julgá-lo um empecilho aos
planos da Nova Ordem, expedida pelos americanos, os patrões de sempre.
Em nome de uma política nebulosa
emanada do chamado Consenso de Washington, mas genericamente classificada,
simplesmente, de “privatização”, Fernando Henrique promoveu uma ocupação
privada no Estado, a tirar do estômago do doente o alimento que ainda lhe
restava, em nome de uma eficiência a ser distribuída em enormes lucros, aos
quais, por motivos óbvios, o eleitor nunca tem acesso.
Das eleições de 1994 surgiu esse
esboço de FHC que ainda vemos no noticiário, um antípoda do mítico “príncipe
dos sociólogos” brotado de um ninho de oposição que prometia, para o futuro do
Brasil, a voz de um homem formado na adversidade do AI-5 e de outras coturnadas
de então.
Sobrou-nos, porém, o homem que
escolheu o PFL na hora de governar, sigla a quem recorreu, no velho estilo de
república de bananas, para controlar a agenda do Congresso Nacional, ora com
ACM, no Senado, ora com Luís Eduardo Magalhães, o filho do coronel, na Câmara
dos Deputados.
Dessa tristeza política resultou um
processo de reeleição açodado e oportunista, gerido na bacia das almas dos
votos comprados e sustentado numa fraude cambial que resultou na falência do
País e no retorno humilhante ao patíbulo do FMI.
Isso tudo já seria um legado e tanto,
mas FHC ainda nos fez o favor de, antes de ir embora, designar Gilmar Mendes
para o Supremo Tribunal Federal, o que, nas atuais circunstâncias, dispensa
qualquer comentário.
Em 1994, rodei uns bons rincões do
Brasil atrás do candidato Fernando Henrique, como repórter do Jornal do Brasil.
Lembro de ver FHC inaugurando uma
bica (isso mesmo, uma bica!) de água em Canudos, na Bahia, ao lado de ACM, por
quem tinha os braços levantados para o alto, a saudar a miséria, literalmente,
pelas mãos daquele que se sagrou como mestre em perpetuá-la.
Numa tarde sufocante, durante uma visita ao
sertão pernambucano, ouvi FHC contar a uma platéia de camponeses, que, por
causa da ditadura militar, havia sido expulso da USP e, assim, perdido a
cátedra.
Falou isso para um grupo de
agricultores pobres, ignorantes e estupefatos, empurrados pelas lideranças
pefelistas locais a um galpão a servir de tribuna ao grande sociólogo do Plano
Real.
Uns riram, outros se entreolharam, eu
gargalhei: “perder a cátedra”, naquele momento, diante daquela gente simples,
soou como uma espécie de abuso sexual recorrente nas cadeias brasileiras.
Mas FHC não falava para aquela gente,
mas para quem se supunha dono dela.
Hoje, FHC virou uma espécie de
ressentido profissional, a destilar o fel da inveja que tem do presidente Lula,
já sem nenhum pudor, em entrevistas e artigos de jornal, justamente onde ainda
encontra gente disposta a lhe dar espaço e ouvidos.
Como em 1998, às vésperas da reeleição, quando
foi flagrado em um grampo ilegal feito nos telefones do BNDES.
Empavonado, comentava, em tom de galhofa, com
o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, das Comunicações, da
subserviência da mídia que o apoiava acriticamente, em meio a turbilhão de
escândalos que se ensaiava durante as privatizações de então:
Mendonça de Barros – A imprensa está
muito favorável com editoriais.
FHC – Está demais, né? Estão
exagerando, até!
A mesma mídia, capitaneada por um
colunismo de viúvas, continua favorável a FHC. Exagerando, até.
A diferença é que essa mesma mídia – e, em
certos casos, os mesmos colunistas – não tem mais relevância alguma.
Resta-nos este enredo de ópera-bufa
no qual, no fim do último ato, o príncipe caído reconhece a existência do filho
bastardo, 18 anos depois de tê-lo mandado ao desterro, no bucho da mãe, com a
ajuda e a cumplicidade de uma emissora de tevê concessionária do Estado – de
quem, portanto, passou dois mandatos presidenciais como refém e serviçal.
Agora, às portas do esquecimento,
escondido no quarto dos fundos pelos tucanos, como um parente esclerosado de
quem a família passou do orgulho à vergonha, FHC decidiu recorrer à maconha.
A meu ver, um pouco tarde demais.
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