O bruxo da ditadura, Golbery do Couto e Silva.
Felizmente mortos.
Dois golpistas.
GOLBERY
& COMISSÃO DA VERDADE
Histórias
de tirar o sono
“Me
sinto extremamente ofendido, com o artigo do Sr. Luiz Cláudio Cunha. Em parte
pela infantilidade que entorta os fatos rumo ao que se deseja, ou seja:
Demagogia. Em parte pela covardia de ofender o caráter de quem já não pode mais
defender-se. Obrigado. (Golbery do Couto e Silva Neto, e-mail ao Observatório
da Imprensa, 9/9/2011)
O
sr. Golbery Neto, compreensivelmente, não gostou do que foi publicado neste
Observatório (ver “Golbery: benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil“)
sobre o avô. Gastou quatro linhas e 44 palavras, sem nenhum argumento, para
tentar desqualificar um texto de 221 linhas e 2.552 palavras calcado em fatos e
na ficha do general gaúcho, inventor do golpe de 1964 e prestes a ser
homenageado com um monumento em sua terra natal, Rio Grande.
Quase
nada se sabe do neto, que diz residir no Rio de Janeiro e se identifica
profissionalmente como ‘internacionalista’, seja lá o que isso possa
significar. Mas muito se sabe do avô, que, aliás, sabia muito mais.
Sabia quase
tudo sobre todos nós, como criador e chefe primeiro do SNI, o Serviço Nacional
de Informações que bisbilhotava a vida dos brasileiros em geral, e dos
opositores em particular. A vida pregressa de Golbery do Couto e Silva
(1911-1987) ganhou súbita atualidade em agosto passado, com a desastrada ideia
dos vereadores e do prefeito de Rio Grande (RS) de homenagear o general no mês
do centenário de seu nascimento, cravando um monumento na praça central da
cidade.
A
oferenda sangrou como uma estaca na memória dos brasileiros, especialmente dos
gaúchos, que justamente nesse agosto festejavam o cinquentenário da Campanha da
Legalidade – o movimento popular de 1961 liderado pelo governador Leonel
Brizola em defesa da posse de João Goulart na presidência da República, vaga
com a renúncia inesperada de Jânio Quadros.
A transição constitucional foi
vetada pelos três ministros militares que leram um manifesto golpista redigido,
ironicamente, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva.
Essa brutal
contradição entre as poucas benfeitorias municipais e as muitas malfeitorias
nacionais do general teve baixa repercussão na imprensa – com exceção de alguns
blogs e opiniões isoladas, contra ou a favor – e nenhum eco entre os políticos
brasileiros, desconectados com a coerência histórica e descomprometidos com a
memória nacional.
O
jovem prefeito de Rio Grande, Fábio Branco, de 39 anos, nem justificou a
homenagem intempestiva: “Não vou fazer juízo da ditadura militar. Eu nem era
nascido…”.
O neto do general, talvez ainda mais jovem, também evita qualquer
consideração sobre a obra política do avô, sob o infantil argumento de que
seria “covarde” avaliar a biografia dos mortos.
Sob este prisma obtuso,
prefeito e neto se eximem, portanto, de julgar episódios como a escravidão e o
nazismo ou de opinar sobre personalidades já finadas como Hitler, Stálin,
Pinochet ou Médici.
Imprensa
complacente
Esta
omissão deliberada não contaminou os cidadãos mais conscientes, de Rio Grande
ou não. Uma pesquisa online do jornal local, o Agora, mostrou que mais
da metade (58,5%) da população discorda do monumento.
Um abaixo-assinado na
internet registra mais de 1.600 assinaturas de todo o país condenando a
homenagem. Indignados, movimentos de sindicatos, estudantes e populares de Rio
Grande formaram uma Comissão “Ditadura Nunca Mais” e, na semana passada,
entregaram às autoridades locais dois livros do jornalista Elio Gaspari: A
Ditadura Escancarada foi ofertada ao prefeito sem juízo e A Ditadura
Derrotada foi agraciada aos vereadores sem tino.
Nas duas obras, parte de
uma magistral tetralogia de 2002 – portanto escrita quando o general, morto em
1987, já não podia mais se defender, para desencanto do neto – o feiticeiro
Golbery refulge merecidamente como personagem central, dividindo a cena com o
sacerdote Ernesto Geisel.
A
mesma imprensa complacente de hoje com o passado tenebroso do general lembra
muito a imprensa conivente de ontem com o general golpista de sempre. Golbery
carrega na sua ficha a proeza de ter derrubado Jango duas vezes do poder.
A
primeira, em 1954, quando redigiu o manifesto de 82 coronéis e
tenentes-coronéis que levou à demissão de João Goulart, então ministro do
Trabalho de Getúlio Vargas, criticado pelos militares pelo aumento de 100% do
salário mínimo.
A segunda, dez anos mais tarde, quando depôs Jango da
presidência da República no golpe vitorioso de 1964, resultado final de uma
científica, pensada e cara conspiração civil-militar que juntou o grande
empresariado nacional e multinacional com a direita dos quartéis sob a fachada
do dissimulado IPES, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais.
O coordenador
do IPES, que deu em 1964 o troco no golpe frustrado em 1961 pela brava
resistência dos seus conterrâneos gaúchos, era o incorrigível Golbery.
Seria
útil que o jovem neto de Golbery aprendesse sobre os fatos da tortuosa carreira
do avô lendo um livro, pelo menos um livro, o clássico 1964: a conquista do
Estado – ação política, poder e golpe de classe (Editora Vozes, 1981), do
professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003).
Ali, em 814 páginas
irrespondíveis, Dreifuss desentorta os fatos para revelar ao neto distraído,
com documentos do próprio IPES, a lenta, gradual e segura conspirata do vovô
Golbery para derrocar um governo democrático e botar no seu lugar uma ditadura
de 21 anos sob o rodízio de cinco generais-presidentes – três deles (Castelo
Branco, Geisel e Figueiredo) tendo o próprio Golbery como inquilino e
feiticeiro-mor no Palácio do Planalto.
O
IPES nasceu em novembro de 1961, três meses após a vitória popular da
Legalidade – quando nem o prefeito de Rio Grande, nem o neto do general, haviam
nascido.
Parecia um inocente clube de homens de negócios.
Entretanto, na sua
face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de
um pensado plano da burguesia nacional para combater de forma clandestina os
seus três principais inimigos
: o governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e
o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo.
O
braço político ostensivo do IPES de Golbery era o IBAD, Instituto Brasileiro de
Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento
Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei.
O fundador do
IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência
de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a ADP –
Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da
centro-direita no Congresso Nacional reunido em torno da UDN, PSD e PSP.
Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio
de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas
políticas e grupos de pressão.
Assalto
sincronizado
Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico e o IBAD, como uma unidade tática.
O monstro crescia
junto com a conspiração.
Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para
500.
Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do
país. A entidade se espalhava pelas capitais do país.
A
articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de
Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery, que
atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A “ordem de serviço com
calendário” do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada
de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do IPES.
A equipe de
Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem
citação da fonte, avaliando a atividade “comunista” no país, apontando o dedo
para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações.
Só
no Rio de Janeiro o clandestino GLC de Golbery tinha três mil telefones
ilegalmente grampeados. O grupo dirigente do general ocupava quatro das 13
salas que o IPES havia alugado no 27° andar do edifício Avenida Central, na
Avenida Rio Branco, então o prédio mais moderno no centro da cidade.
A conta do
telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de
Ernesto, futuro sacerdote no Planalto.
O
GLC do vovô Golbery escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total
de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos,
disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. O Grupo de
Atuação Parlamentar (GAP) do IPES tinha vergonha do que fazia.
Proibia qualquer
menção à sigla, que era camuflada como “Escritório de Brasília”. Ele coordenava
a campanha anti-Jango na capital, mas quem aparecia publicamente era o IBAD e o
fazendeiro baiano João Mendes, deputado udenista e líder ostensivo da Ação
Democrática Parlamentar.
O
plano era simples e mortal: o IPES de Golbery, por intermédio do IBAD e da ADP,
emparedava o governo no Congresso, criando um beco sem saída parlamentar e um
ponto morto do Executivo.
A inércia legislativa levaria ao clamor popular pelo
poder “moderador” das Forças Armadas, única instituição capaz de tirar o país
daquele atoleiro fabricado pela conspiração urdida pelo general no Parlamento.
Neste
trabalho era fundamental manipular a opinião da sociedade. Na dura expressão de
René Dreifuss, “o IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião
pública” pela relação especial com os principais veículos da mídia nacional.
O
objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus
objetivos na imprensa falada e escrita. Dissimulado, o grupo evitava o nome
“opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”.
José
Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a
opinião pública” era a essência da ação política do grupo.
O principal
articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Fonseca, que começou
na vida como “tira” no 16° Distrito Policial de São Cristóvão, um subúrbio
operário da zona norte do Rio, no réveillon de 1952.
Conspiração sem twitter
Em
1958, trocou a delegacia por um cargo de relações públicas da Light, a empresa
americana de energia que se tornaria uma das líderes do IPES e da conspiração.
Em 1963, um ano antes do golpe, o ex-comissário José Rubem Fonseca deu aos 38
anos seu primeiro tiro certeiro na literatura: lançou o livro de contos Os
prisioneiros com o nome literário de Rubem Fonseca.
O festejado autor de Feliz
Ano Novo, A grande arte e Bufo & Spallanzani tornou-se
nas décadas seguintes o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio
Camões, uma espécie de Nobel para escritores da língua portuguesa.
Outros
destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco Carneiro e Wilson
Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do Brasil.Em São Paulo, o
GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton Propaganda, e nomes ilustres de O
Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e Flávio Galvão.
Contava ainda com Jorge
Sampaio e Alves de Castro, os dois nomes centrais do Repórter Esso da TV
Tupi, o equivalente ao Jornal Nacional da Rede Globo de hoje,
patrocinado pela Esso do Brasil, membro importante do IPES do vovô Golbery.
Em
tempos sem e-mail ou twitter, o GOP se valia da tecnologia da época: enviava
milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, antecipando em
décadas o odiado telemarketing.
Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a
lista de organizações de rádio e TV mobilizada pelo GOP. Aliado a ele
funcionava o GPE, Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material
impresso pelo país. Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do
ex-comissário e contista Rubem Fonseca, que incluía intelectuais respeitados
como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Rachel de Queiroz, prima do
general Castelo Branco, líder do golpe que derrubou Jango.
Rachel foi presa no
golpe do Estado Novo, em 1937, acusada de subversiva, e teve seus livros
queimados.
Um quarto de século depois, a comunista de Fortaleza era uma
intelectual engajada na equipe de propaganda de direita de Rubem Fonseca no
IPES.
O primo Castelo Branco, já ex-presidente, morreu num acidente aéreo em
1967 quando retornava de um passeio à fazenda da prima Rachel.
Os
propagandistas do GOP atuavam em três frentes: artigos para jornais e revistas,
panfletos para circular entre estudantes, militares e operários, e livros que comparavam
a democracia com a empresa privada. Em comum, eram todos anticomunistas,
antitrabalhistas e antinacionalistas – a tríade que embalava o cérebro do vovô
Golbery.
Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia. Editora Nacional
e GRD Editora, colaboravam na publicação da chamada “literatura democrática”.
Balcão
de deputados
A
escolha dos candidatos agraciados com o apoio financeiro pelo IPES de Golbery
obedecia a uma regra rígida, quase um contrato de compra e venda.
Quem se
habilitava a integrar a lista de “democratas convictos e anticomunistas de
primeira ordem” passava pelo crivo dos analistas do complexo IPES/IBAD.
Mais
importante do que a filiação partidária era a orientação das ideias. Cada
candidato era compelido a assinar um “ato de compromisso ideológico”, pelo qual
prometiam lealdade ao IBAD acima da fidelidade ao seu partido, prometendo ainda
lutar contra o comunismo e a defender o investimento estrangeiro.
Mas
a mercadoria custava caro. O chefe do GAP (Grupo de Ação Parlamentar) do IPES,
o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores, avaliava os candidatos pelo
coeficiente eleitoral.
De início, ele calculava que cada deputado “custaria”
cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 317 mil), mas percebeu que
esta seria a conta de nomes da Paraíba e outros Estados menores.
O preço
aumentava no Ceará e ainda mais na Bahia. Os candidatos de Rio e São Paulo eram
mais caros, explicou Mello Flores, avaliando a conta per capita dos deputados
no balcão do IPES do vovô Golbery: 15 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$
792 mil).
O
orçamento de um candidato pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral
incluía despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas,
fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle,
gasolina, correspondência e pessoal de apoio…
Tudo isso ao custo de uns 10
milhões de cruzeiros, o que não era pouca coisa.
Dez milhões, que hoje valem R$
528 mil, equivaliam então à renda diária de 20 mil trabalhadores de salário
mínimo, número de votos atualmente suficientes para eleger vereador em capital.
O
IPES de Golbery recebeu apoio financeiro de 297 corporações americanas.
Passavam o chapéu entre empresas britânicas, suecas, alemãs.
A Fundação Konrad
Adenauer, órgão do Partido Democrata Cristão alemão, canalizava recursos pelo
sólido complexo siderúrgico Mannesmann e pela gigante Mercedes Benz. O neto
certamente não sabia, mas o vovô Golbery encarregou-se pessoalmente do contato
com o presidente da Mercedes.
Grampo
na Casa Branca
Os
amigos do general estavam ativos, também, em Washington. Na segunda-feira, 30
de julho de 1962, o presidente John Kennedy entrou no Salão Oval e ligou pela
primeira vez seu novo brinquedinho, instalado no fim de semana: o sistema
secreto de gravação de voz da Casa Branca.
A estreia prometia: era uma conversa
cabeluda de Kennedy com o seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, parceiro de
Golbery no caminho para o golpe militar que derrubaria João Goulart dois anos
depois.
Começava pelo gasto não contabilizado de US$ 8 milhões nas eleições de
1962, adubando secretamente candidatos apoiados pela CIA e simpáticos aos EUA.
A conexão americana do mundo político brasileiro com os militares golpistas era
feita por outro amigo do peito de Golbery – o discreto adido militar da
embaixada, coronel Vernon Walters, que chegaria a vice-diretor da CIA no auge
do Caso Watergate que derrubou Nixon, em 1974.
A
transcrição das fitas foi revelada no livro do jornalista americano Tim Weiner,
Legado de Cinzas – Uma história da CIA (Ed.Record, 2008), outra leitura
instrutiva que poderia iluminar a cabeça de Golbery Neto.
Ela mostra, numa
frase de Gordon para Kennedy, que o alvo central da conspiração era o mesmo de
Golbery – o próprio Jango:
–
Para expulsá-lo, se necessário – disse o embaixador, esclarecendo – O posto da
CIA no Brasil deixará claro, discretamente, que não somos necessariamente
hostis a qualquer tipo de ação militar, em absoluto, se ficar claro que o
motivo da ação militar é…
–…
contra a esquerda – completou o presidente Kennedy, dando o sinal verde para o
golpe que aconteceria vinte meses depois.
Na
véspera da eleição de 1962, a Promotion de Ivan Hasslocher, líder do IBAD,
arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo mensal de 2
milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual) para propaganda
direta.
A revista Repórter Sindical também era operada pela entidade. O
órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava mensalmente com 250 mil
exemplares e textos de gente graúda como o economista Eugênio Gudin e o líder
udenista Aliomar Baleeiro. Era gratuita e, ainda assim, não tinha um único
anúncio.
No início de 1963, um manifesto de 500 profissionais de prestígio,
organizados pelo Centro Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi
publicado no Jornal do Brasil e em O Estado de S.Paulo.
Manifestos
variados, todos “democráticos”, proliferavam na imprensa e eram retransmitidos
pela dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que
redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país. Tudo
gratuito, tudo pela pátria, tudo pela “democracia”.
Um milhão de cópias da
Cartilha para o Progresso, feita pelo IPES, exaltando os benefícios da Aliança
para o Progresso do governo americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos,
revista na época de grande circulação da Editora Bloch.
O
extremista do Estadão
Num
país de elevado analfabetismo, o esperto vovô Golbery percebeu a importância do
rádio e da nascente televisão. O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para
produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de
questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente
selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia.
Estavam escalados nesse time alguns ilustres conterrâneos de Golbery, como o
senador Mem de Sá (presenteado com a cadeira de ministro da Justiça no governo
Castelo Branco), os deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen e Raul Pilla, o
prefeito de Porto Alegre Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer.
Em
1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário
nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a
ele formava a “Cadeia da Democracia”, sob o comando do senador João Calmon, dos
Diários Associados, que tinha o cuidado de ir ao ar no mesmo horário das
transmissões do líder trabalhista Leonel Brizola, que derrotara Golbery um ano
antes com a “Cadeia da Legalidade”.
O
maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi contratado por
Golbery para produzir filmes como Que é a democracia, Deixem o
estudante estudar, Uma economia estrangulada, Criando homens
livres.
Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste
exibido nas matinês do interior do país, onde se espalhavam três mil salas de
cinema.
Quando a plateia não aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou
o projeto do “cinema ambulante” em caminhões abertos e ônibus com chassis
especiais, que percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes. Era
um mutirão democrático:
a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz
emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.
Na
medida em que avançava a conspiração, crescia a presença militar sobre a base
parlamentar. Era hora de sair do discurso para a prática. O IBAD cede seu lugar
de destaque para outra sigla – a ESG, a Escola Superior de Guerra, de onde
provinham Golbery e o núcleo fardado do golpe.
O novo complexo IPES/ESG
alinhava 330 oficiais, de majores a generais de Exército, fazendo a ligação do
mundo empresarial com os quartéis. Sempre sob a liderança do vovô Golbery, lá
estavam nomes que, mais tarde, fariam parte do poder revolucionário, como
ministros ou até presidentes. Orlando Geisel, Mário Andreazza e Walter Pires formulavam
planos com Castello Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.
Um
grupo que Dreifuss nomeia como “Extremistas de Direita” juntava fanáticos
anticomunistas com adeptos da modernização industrial conservadora.
Curiosamente, o grupo era mais ligado ao jornalista Júlio de Mesquita Neto,
expoente da “linha dura” paulista que pregava uma forte mensagem anticorrupção
e contra a esquerda.
Com Mesquita estavam seu irmão Ruy e os deputados Abreu
Sodré e Paulo Egydio Martins, mais tarde governadores indiretos de São Paulo
indicados pelos quartéis.
Os
três ministros militares que Golbery transformou em locutores de seu manifesto
no golpe frustrado de 1961 – o marechal Odylio Denys, o almirante Sílvio Heck e
o brigadeiro Grun Moss – mandaram emissários da conspiração a São Paulo para um
encontro, no início de 1962, com Júlio Mesquita Filho, a quem entregaram um
documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de
Jango.
O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi
mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de
ficar no poder por pelo menos cinco anos.
Animado com a conversa, Mesquita
chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário.
Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita
chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar Senado, Câmara e
Assembleias e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura
anos depois faria seu jornal engolir com o AI-5, na forma de versos e receita
de bolo.
Ciência
e violência
No
Rio Grande do Sul, quartel-general do III Exército, a maior concentração de
tropa terrestre do país e foco principal da resistência de Brizola na Campanha
da Legalidade, dois terços da oficialidade já estavam engajados na rebelião.
O
coronel da Brigada Militar Peracchi Barcelos (PSD), eleito deputado pela
máquina do IPES do general Golbery, tratava de sublevar a força pública do
estado.
O
general Armando Cattani – que comandou no período 1958-59 a poderosa 6ª Divisão
de Exército em Porto Alegre, exatamente quando Brizola deixava a prefeitura da
capital gaúcha para assumir o governo do estado – organizava grandes
fazendeiros no interior do Rio Grande do Sul em unidades paramilitares que
seriam acionadas na hora precisa do golpe.
O
general Cattani era tão amigo do general Golbery que foi selecionado por ele
para assumir como interventor a prefeitura de sua terra natal, Rio Grande.
O
posto ficou vago de repente graças à quartelada de março de 1964, que transformou
a cidade portuária em “área de segurança nacional” e cassou o mandato do
prefeito do PTB, Farydo Salomão, no cargo havia apenas três meses.
Não é a
juventude, mas a alienação, que pode explicar o desconhecimento que o atual
prefeito de Rio Grande e o neto do general têm sobre as violências praticadas
pela ditadura de Golbery e seus comparsas nos primeiros dias do golpe
exatamente na cidade onde ele nasceu.
Golbery,
evidentemente, não tem nenhum envolvimento pessoal com as truculências na sua
terra. Mas o general tem tudo a ver com o regime de força que permitiu esses
abusos.
Como porto e área estratégica no extremo sul do país, Rio Grande
coordenava a repressão ali pela SOPS-RG, a Seção de Ordem Política e Social que
unia forças do 6º Grupamento de Artilharia de Campanha (GAC) do Exército, o
Batalhão de Polícia Motorizada, a Polícia Federal e a Polícia Civil, que
cobriam seis municípios da região, de Pelotas a Chuí.
A
SOPS era subordinada ao DOPS de Porto Alegre, onde brilhava o nome mais
importante do aparato repressivo gaúcho, o delegado Pedro Seelig. Foi pelo Chuí
que ele devolveu à ditadura uruguaia os ativistas Lilian Celiberti e
Universindo Diaz, sequestrados em Porto Alegre em novembro de 1978 por um
comando binacional da Operação Condor, integrado por agentes de Seelig e
militares enviados por Montevidéu.
A SOPS de Rio Grande e o DOPS de Seelig eram
todos membros fraternais da “comunidade de informações”, gerenciada desde
Brasília pelo SNI criado pelo grande-irmão Golbery.
O
neto ainda não deve saber, mas as brutalidades do regime não poupavam nem os
conterrâneos do avô. Um bom exemplo foi relatado por Leandro Braz da Costa,
mestrando em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, num
trabalho sobre repressão publicado este ano na Jornada de Estudos sobre
Ditadura e Direitos Humanos, do Arquivo Público do Rio Grande do Sul.
O
historiador ouviu em 2009 um inspetor lotado em Rio Grande, na década de 1970,
na 7ª Delegacia Regional da Polícia Civil, dotada de celas especiais com
pau-de-arara e choque elétrico para a prática de torturas. A sofreguidão por
informações do preso excitava a criatividade, como revela o inspetor:
[...]
quando o delegado exigia que obtivéssemos rapidamente uma confissão ou uma
informação, tínhamos que apertar o cara ainda mais… levávamos o indivíduo
vendado e sem roupa lá pra praia do Cassino, na madrugada.
Daí amarrávamos as
mãos e os pés dele com uma corda e entrávamos com ele no mar. Afogávamos o
cara… contávamos a passagem de seis ou sete ondas e depois retirávamos ele da
água. Repetíamos isso várias vezes, até quase ele não aguentar mais.
Se mesmo
depois disso ele não falasse nada, nós eletrocutávamos ele com os fios ligados
no dínamo [do motor] do Opala. Isso sempre funcionava [...]
Tortura
no mar
Na
terra de Golbery, o terror vinha do mar. Em 28 de março de 1964, três dias
antes do golpe, o NHi Canopus (H22), um navio hidrográfico da Marinha de 1.800
toneladas e 78 metros de comprimento, concluiu seu trabalho científico de 30
meses para o levantamento da costa sul brasileira desde Torres até Chuí. Missão
cumprida, tomou o caminho de Rio Grande, onde ancorou ao largo do porto.
Era
comandado pelo capitão-de-fragata Maximiano da Fonseca, que na década de 1980
seria colega de ministério de Golbery, como almirante e ministro da Marinha do
governo Figueiredo. Levava a bordo 116 tripulantes, um helicóptero e 14
cientistas. Mas, naqueles dias agitados dos idos de março, o barco abrigou uma
carga inesperada: presos políticos.
Transformado
em navio-prisão, o Canopus de Maximiano virou o cativeiro do prefeito cassado
Farydo Salomão, ali submetido a torturas por ser amigo de Brizola e Jango. A
violência é denunciada no livro Centenário do Colégio Lemos Júnior,
escrito pelo jornalista Willy Cesar, riograndino como Golbery e que hoje
defende o preito ao general.
Outro depoimento, ainda mais forte, é do
ex-capitão da Brigada Militar Athaídes Rodrigues, vereador e aliado do
prefeito. No dia 7 de abril de 1964, 50 homens cercaram sua casa e o levaram
preso, ainda de pijama, num jipe que rodou pela cidade até chegar à Capitania
dos Portos.
Dali, o vereador trocou o jipe por uma lancha e foi transportado à
prisão flutuante do Canopus, onde se juntou a vários ferroviários detidos,
incluindo o presidente do sindicato, Miguel Gomes.
Incorporado
à Marinha em 1958, seis anos antes do golpe, o Canopus sobreviveu ao regime,
aposentando-se doze anos após a queda da ditadura, em 1997.
Nesse período,
passou 3.342 dias no mar e navegou mais de um milhão de quilômetros, o
suficiente para 26 voltas ao mundo.
A longa, impecável ficha funcional do
Canopus ficou manchada, contudo, pelo desvio de rota ética que o imobilizou no
porto de Rio Grande, abandonando por uns tempos a ciência das águas para lançar
âncora na violência das mágoas políticas.
O
navio-prisão na terra de Golbery era um resumo preciso do país-presídio a que
Golbery e sua conspiração reduziram a terra dos brasileiros.
O cativeiro
temporário do Canopus em Rio Grande não era uma exclusividade do sul, mas uma
fatalidade que se reproduzia em outras águas, em outras terras. No maior porto
do país, Santos, no litoral paulista, estava fundeado o caso mais notório de
navio-prisão do país, o Raul Soares.
Era um velho transatlântico alemão
construído em 1900, comprado pelo Lloyd Brasileiro em 1925 e transformado em
navio de carga e passageiro para a rota Santos-Manaus.
Faca
para o bife
Quase
duas vezes maior que o Canopus, com 125 metros de comprimento, o Raul Soares
tinha 110 tripulantes e acomodação para 580 passageiros. Os 80 da primeira
classe tinham cabine reservada, salão de jantar e orquestra a bordo com pista
de dança.
Os outros 500 se acomodavam em redes e cobertas nos quatro porões, e
comiam ali mesmo, disputando espaço com a carga – homens na proa, mulheres na
popa.
No espaço de dez anos, o Raul Soares navegou ao sabor das marés da
história: serviu de prisão para os comunistas da fracassada rebelião de 1935 e
trouxe para casa em 1945 os pracinhas da FEB que, aliados aos comunistas da
União Soviética, derrotaram o Eixo nazifascista.
Em
24 de abril de 1964, o navio lúgubre de casco negro e uma enorme chaminé
fumegante foi rebocado pela nova ordem militar até um banco de areia na ilha do
Barnabé, em Santos. Cinco dias depois recebeu ali sua primeira leva de
passageiros compulsórios: 40 sargentos do Exército que se opuseram ao golpe.
Outros mais – militares e civis, sindicalistas e suspeitos em geral – chegariam
depois, num total de quase 500 presos políticos, todos sem processo legal, sem
direito a cabine reservada, nem orquestra, nem pista de dança.
Ousaram desafiar
a partitura desafinada da ditadura e foram jogados como carga nos seus porões
infectos.
O
Raul Soares tinha três calabouços, batizados pelos presos com nomes de boates
famosas da época. O “El Morocco”, um salão metálico sem janelas, ventilação ou
luz ao lado da caldeira, tinha uma atmosfera irrespirável de mais de 50 graus.
O “Night and Day”, colado à geladeira, era uma sala menor onde os presos
ficavam com água gelada na altura do joelho.
O “Casablanca”, talvez o pior
deles, era o depósito de fezes, onde a elas se misturavam os presos que
precisavam ter a resistência quebrada, pela humilhação ou pelo mau cheiro.
Este
era o fedor institucional e jurídico emanado pela desordem militar manipulada
no caldeirão malcheiroso do vovô Golbery.
Os
detalhes escabrosos dessa história foram publicados em 1979 pelo repórter Mauri
Alexandrino no jornal Preto no Branco, da Cooperativa dos Jornalistas de
Santos.
A desordem gerada pela prepotência da nova ordem foi percebida no dia
em que 16 presos receberam uma boa notícia: haviam recebido habeas-corpus do
juiz da 2ª Vara Criminal de Santos, Antônio Granda.
À noite, aliviados,
embarcaram na lancha e deixaram para trás aquele inferno. Foram direto para a
sala do capitão dos Portos de São Paulo, Júlio de Sá Bierrenbach, encarregado
dos inquéritos policiais na área sindical e política. O capitão chamou a
imprensa, autorizou fotos, dispensou os jornalistas e, a sós com os presos,
avisou:
“Quero
comunicar que vocês estão soltos
Agora que estão em liberdade, estou dando
nova voz de prisão. Vocês saíram do processo da Aeronáutica, mas ainda não enfrentaram
o da Marinha. Estou abrindo novo inquérito.”
Os
soldados reconduziram os presos para a lancha que os devolveu ao inferno.
Muitos deles choravam, afogados num sentimento que mesclava tristeza e ódio.
Jornalistas só tinham acesso ao Raul Soares como prisioneiros ou pelo filtro
rigoroso do servilismo.
Certo dia, dois jornalistas da Gazeta de Santos,
escolhidos a dedo pelos militares, foram convidados a visitar a prisão
flutuante.
Elogiaram muito os comandantes pelas “ótimas condições carcerárias”
e, na edição do dia seguinte do jornal, lembraram-se de uma única queixa dos
prisioneiros: “Não existiam facas para cortar os bifes”, anotaram.
Caneta
e metralhadora
Um
jornalista subiu a bordo a contragosto: Nelson Gatto, repórter policial dos Diários
Associados, penou ali 43 dias encarcerado. Sobreviveu para contar seu
martírio em 1965 num livro – Navio Presídio – que ninguém leu.
Foi
apreendido pelo DOPS antes de alcançar as livrarias. A Justiça mandou liberar,
a Aeronáutica mandou apreender de novo.
No Superior Tribunal Militar (STM),
Gatto ganhou por 10 a 0, com voto do ministro Olympio Mourão Filho, o general
de Juiz de Fora que botou os tanques na rua em 31 de março.
O
movimento militar desfechado em nome da santa hierarquia se convertera,
naqueles dias agitados, num constrangedor foco de subversão: os
oficiais-generais da suprema corte militar do país mandaram liberar o livro, um
reles oficial da Aeronáutica fez exatamente o contrário.
O coronel-aviador
Francisco Renato de Melo invadiu a gráfica, recolheu toda a edição e a jogou no
mar. Escapou um único exemplar.
O coronel da Aeronáutica justificou assim a
truculência: “Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras”. Em 1967,
cumprindo a maldição do capitão Bierrenbach, Gatto foi preso novamente para responder
sobre o livro que nunca circulou.
Os
defensores de Golbery, sem a ingenuidade do neto, lembram sempre o seu papel na
distensão e na abertura do regime executadas pelos dois generais – Ernesto
Geisel e João Figueiredo – que lhe deram o longo reinado de sete anos como
poderoso ministro da Casa Civil, entre 1974 e 1981.
É verdade. No entanto,
indulgentes, esquecem-se de dizer que Golbery estava também na outra ponta do
processo político, fechando o ciclo democrático em 1964 e inaugurando uma
ditadura que sobreviveria 21 anos.
A
diástole que descontraía o sistema, segundo seu cardíaco pensamento político,
foi antecedida pela contração da sístole.
O general que comandou a sístole de
1964 não conseguiu pilotar a diástole de 1984, que acelerou com a hipertensão
popular das multidões nas praças e avenidas das Diretas-Já e terminou com o
surto de Tancredo Neves em pleno Colégio Eleitoral.
Os amigos não lembram, e o
neto não diz, mas é sempre bom repetir que o candidato de vovô Golbery no
colégio era Paulo Maluf, confirmando sua teimosa vocação para estar sempre do
lado oposto aos interesses populares.
Príncipes
do bruxo
O
teórico da “doutrina da segurança nacional” instaurou, por ardis, aparatos e
artimanhas, uma rotina de insegurança pessoal que sacramentou o medo e a
delação num país intimidado pela repressão e assustado pela síndrome da
intriga, do grampo, da denúncia.
Essa inclinação para o mal, como já deve ter
suspeitado o jovem Golbery Neto, reforça a tese de que o avô tinha forte
inclinação por dois príncipes – o de Maquiavel e o de Lampedusa.
O
ardiloso general tinha a consciência da fortuna, a idéia romana de sorte,
definida pelo gênio florentino como algo inevitável, que pode levar alguém ao
poder ou tirá-lo de lá. Como se sabe, uma obsessão muito golberyana.
E, como o
autor de O Leopardo, o general tentava “tudo mudar para que tudo ficasse
como está”. A desastrada campanha de Maluf no Colégio Eleitoral mostra que
Golbery tentava “mudar para preservar”, dando uma sobrevida civil ao regime
militar que definhou como a aristocracia siciliana do século 19 desenhada por
Lampedusa.
Maluf,
na cabeça de Golbery, era o meio que justificava – ou adiava – o fim.
Golbery
Neto provavelmente era nascido em 1977, quando o vovô Golbery cometeu sua
derradeira bruxaria bem sucedida, o “Pacote de Abril”.
Como de hábito, contra o
povo. Sob o comando do sacerdote Geisel, o feiticeiro e meia dúzia de áulicos
cozinharam uma sulfúrica emenda constitucional e seis decretos leis que, em
resumo, dissolviam a vontade popular, um estorvo permanente aos planos de
Golbery.
Fecharam o Congresso para ruminar em paz seus feitiços, cancelaram a
eleição direta de 1978 para governadores, inventaram um monstrengo sem voto (o
senador-biônico), ampliaram para seis anos o mandato do sucessor de Geisel e
aumentaram o peso de Estados menos populosos e politizados no Congresso
Nacional.
Era
Golbery, de novo, num surto de Lampedusa.
Mito
na granja
Dois
anos depois vovô Golbery recrudesceu, cada vez mais assustado com o crescimento
do MDB, que pela força do voto emparedava a ARENA, a sigla da ditadura. Era
preciso mudar o quadro partidário, implodindo a frente oposicionista, para que
tudo ficasse como estava.
A
ARENA virou PDS (o povo não esquece) e o MDB virou um caco, rachado entre cinco
legendas: o PMDB de Ulysses, o PTB de Ivete Vargas, o PP de Tancredo Neves, o
PDT de Leonel Brizola e o PT de Lula. A fortuna do mago florentino sorria para
o bruxo riograndino.
O marido de Ivete, Paulo Martins, trabalhava com Golbery
no Gabinete Civil.
Ivete,
que tinha o apoio de Golbery para arrebatar o PTB das mãos de Brizola, foi
chamada em 1979 à Granja do Ipê, residência do general em Brasília, para ouvir
este satânico raciocínio do feiticeiro:
–
Precisamos trazer o Brizola de volta para o Brasil, porque ele está se tornando
um mito muito forte fora do país. É melhor que ele volte e dispute eleição,
porque assim perderá prestígio político.
O
ex-deputado federal Sinval Boaventura, um radical arenista mineiro, foi lá na
granja conferir a ideia com Golbery. O general ampliou sua tese, apostando num
nome:
–A
estratégia é estimular a imprensa para projetar Luiz Inácio Lula da Silva, o
Lula, um grande líder metalúrgico de São Paulo, uma liderança inteligente e
expressiva.
Ele precisa ser preparado para ser o anti-Brizola.
Todo
esse prontuário de Golbery passou em branco pela grande imprensa, que não abriu
espaço para a atrevida homenagem ensaiada em Rio Grande. Um historiador da
terra, Chico Cougo, 24 anos, portanto bem mais jovem que o alienado prefeito de
sua cidade, nasceu dois anos após a queda da ditadura.
Nem por isso deixa de
abastecer seu blog para emitir seu juízo ferino sobre o conterrâneo general,
alinhando textos inteligentes, devastadores numa série imperdível sobre
“Golbery e a cidade surreal”.
Outra
exceção à regra do silêncio é o jornalista e escritor Juremir Machado da Silva,
que acaba de lançar o livro Vozes da Legalidade, tem programa na rádio
Guaíba e coluna no Correio do Povo, onde provocou:
“Rio
Grande quer homenagear o ‘Rasputin’ nacional. Por que não uma estátua para os
ministros militares que tentaram dar o golpe em 1961?… O mais incrível é que [o
prefeito] Fábio Branco pertence ao PMDB, que se orgulha de ter combatido a
ditadura… Resta uma hipótese radical: Branco quer expor Golbery às pombas da
praça Tamandaré…”
A maior corrupção
Duas
vozes expressivas da imprensa gaúcha discordam. Lasier Martins, âncora da RBS
TV, o principal grupo de comunicação do sul, acha que a homenagem é parte da
democracia.
Indaga: “É tão difícil assim entender isso?”. É, é muito difícil
entender, considerando que nenhuma democracia deve exaltar quem conspirou
contra a democracia.
O
experiente jornalista Érico Valduga, dono do Periscópio, um respeitado
blog políticodo sul, acha que a homenagem “é uma questão local legítima” em que
“a sociedade de Rio Grande preferiu ver no conterrâneo o governante que
beneficiou a cidade com obras públicas importantes”.
Há
dois graves problemas nesse raciocínio
A sociedade riograndina, pelo que se vê
na pesquisa do jornal local, vê mais as malfeitorias nacionais do que as
benfeitorias municipais, condenando como ilegítima a homenagem por maioria de
quase 60%. A proposta ainda foi aprovada por menos da metade dos vereadores da
Câmara, apenas seis em 13 representantes.
Valduga
arrisca uma tese mais ousada para condenar os que se opõem ao louvor a Golbery:
“É uma irresponsabilidade diversionista, que contribuirá para desfocar as lutas
contra a corrupção”.
O jornalista esquece que não há maior exemplo de corrupção
do que um golpe que fecha o Parlamento, castra a vontade popular pelo veto ao
voto, cassa mandatos políticos, censura, prende, tortura e mata, impondo ao
país uma treva de 21 anos, consagrando a impunidade e estimulando a corrupção.
Foi o louvado Golbery quem pensou esta irresponsabilidade que nos privou da
democracia por duas décadas.
Nada
mais diversionista.
O
que espanta, de fato, não é a voz condescendente de alguns jornalistas, mas a
afonia das principais lideranças do PMDB gaúcho, herdeiro do mais aguerrido e
mais atingido MDB do país, que lutou e sangrou contra a ditadura gestada pelo
general Golbery.
O autor da proposta indecente é vereador do PMDB de Rio
Grande, Renato Albuquerque, que viu seu PLV (projeto de lei de vereador) nº
93/2009 aprovado pela minoria da casa na sessão de 21 de dezembro de 2009.
Cinco dos 13 vereadores estavam ausentes, só seis (menos da metade) aprovaram,
contra dois votos.
O prefeito Fábio Branco, também do PMDB, apôs sua assinatura
na lei nº 6.835 exatos dez dias depois, em 31 de dezembro, quando a cidade e o
país, desatentos, só estão preocupados com o réveillon damadrugada. Cobrado
pela homenagem ao general, o prefeito que veio ao mundo em 1972 evocou o
calendário para se eximir de um juízo sobre a ditadura de 1964: “Eu não era
nascido…”
Tributo
à treva
Não
se conhece nenhum juízo, qualquer manifestação pública ou privada das
principais lideranças, dos nomes históricos do PMDB gaúcho – todos nascidos e
crescidos bem antes das malfeitorias antidemocráticas de Golbery.
O Congresso
Nacional, três vezes fechado e pesadamente mutilado pelo golpe engendrado pelo
general desde os idos de 1961, recebeu a decisão de Rio Grande com um
atordoante silêncio.
À esquerda e à direita, nenhum dos 513 deputados, nenhum
dos 81 senadores emitiu uma palavra, um só discurso, um mísero aparte, a favor
ou contra.
Do
PMDB nacional não se podia esperar nada de mais. Afinal, o MDB velho de guerra
que um dia foi comandado por gente como Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela,
Tancredo Neves, Alencar Furtado, Itamar Franco, Mário Covas, José Richa e
Franco Montoro hoje é um PMDB rebaixado a gente como José Sarney (o último
presidente do PDS, que o povo não esquece), Michel Temer, Renan Calheiros,
Romero Jucá, Jáder Barbalho, Henrique Eduardo Alves, Newton Cardoso, por aí.
O
alheamento do Parlamento a uma questão moralmente tão grave mostra o grau de
desmemória a que se relegou a política brasileira, talvez o derradeiro legado
do general Golbery para um país que não preza sua história e não consegue nem
identificar os malfeitores da democracia.
O desastrado, debochado ensaio de
louvor a Golbery do Couto e Silva no sul coincide com a criação de uma Comissão
da Verdade em Brasília que, em tese, irá dissecar a obra mais monstruosa do
general: a ditadura de 21 anos.
Um país que se recusa a discutir um tributo
infeliz ao mentor da mais longa escuridão da República pode estar, na prática,
erigindo um mausoléu da decência, da justiça, da consciência política.
Golbery
Neto, antes de se ofender com um simples artigo baseado na história, devia ler
e estudar um pouco mais para entender a real dimensão de seu avô, um contumaz
cérebro do arbítrio que deve ser conhecido, debatido e lembrado pelos
brasileiros – jamais exaltado.
Afinal,
se a omissão paralisa até a sociedade politicamente organizada, essa sanção
moral ficará por conta dos pombos da praça Tamandaré.
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