A chuva voltou à São Paulo, depois de quase 80 dias da segunda maior estiagem da sua história. O ar seco e as precárias condições de infraestrutura contribuíram para que a cidade vivesse nesse período uma sucessão de incêndios em suas 1.650 favelas, habitadas por quase 1,5 milhão de pessoas (11% da população.
Mais de 40 arderam desde janeiro; perto de 70, se incluídos focos menores. Muitos aglomerados viraram cinzas. Centenas de famílias, milhares de pessoas retrocederam um pouco mais, conforme a clássica síntese 'perderam tudo'.
O último episódio, nesta 2ª feira, destruiu 80 barracos incrustados sob um viaduto no centro da cidade mais rica da América Latina. Um morador morreu. O mesmo local já havia queimado no final do ano passado.
Um detalhe: estamos na segunda quinzena de setembro, o orçamento do Programa de Prevenção contra Incêndios em Assentamentos Precários (Previn) não recebeu um único centavo este ano.
Para quem acha que não leu direito: a prefeitura há oito anos dirigida pelo consórcio Serra/Kassab não liberou nenhum centavo do programa de prevenção de incêndios em favelas no ano da segunda maior seca vivida por São Paulo.
Para alívio dos miseráveis, a chuva chegou antes que as chamas fizessem mais estragos. Resta saber agora quem irá salvá-los das águas. Ser pobre na São Paulo de Serra e Kassab é quase como viver no Estado de natureza.
O insuspeito jornal 'Estadão', na edição desta 4ª feira, adiciona alguns elementos a esse desabrido exercício de Estado mínimo para os pobres, na maior cidade do país.
Vejamos. O Previn existe desde 2009. Por lei, determina a instalação de hidrantes, extintores de incêndio, escadas e rotas de fuga em favelas e cortiços. Passados 3 anos, essas providências só foram implantadas --da forma como se imagina que tenham sido-- em 3% das favelas da cidade.
Três anos para atingir 3% de execução de um programa que, longe de ser complexo, consiste em estender uma rede de água para o hidrante, fornecer extintor de incêndio e treinar voluntários? Convenhamos, não é um cochilo. É uma visão da cidade.
Um critério de gestão subordinado a um entendimento de cidadania. Nada contra ciclovias de faz-de-conta para um fim de semana de sol. Mas, 3% de execução do Previn?
O nome disso é desinteresse público em relação aos pobres; esférico, convicto, soberbo, robusto 'desinteresse público' que interliga gestões assemelhadas em todo o mundo, formando um carretel conservador que explica em boa parte a desordem neoliberal.
A racionalidade que a trança esses fios foi esmiuçada pelo tosco rival republicano de Obama, Mitt Romney, entre um drinque e outro, num jantar de campanha com endinheirados da Flórida.
Romney disse então que não vai perder tempo com 47% da população norte-americana formada por essas pessoas que, na sua visão "... dependem do governo, que acreditam que são vítimas, que acreditam que o governo tem a responsabilidade de cuidar delas, que acreditam que tem direito à saúde, a comida, à moradia…
Que isso é um direito. E que o governo (o Estado) deveria dar a elas".
Façamos justiça: Romney não sabia que a exaltação ao apartheid estava sendo gravada. Talvez fosse mais comedido se soubesse. Ou não.
Tem gente que acredita nisso.
Gente que ostenta razoáveis cabedais acadêmicos; gente que vai a teatro, aprecia sinfônicas, cultiva tertúlias na Casa do Saber.
Mas considera 'normal' favelas arderem na seca e sofás ordinários boiarem as chuvas , como deve ocorrer a partir de agora em São Paulo; gente que entende que isso não tem origem ou causalidade política, sendo a pura expressão do estado das coisas.
É um jeito de explicar o mundo, que condiciona a forma de construir a cidade. Tanto assim que optam pela continuidade em São Paulo, como sugere um manifesto, dito de intelectuais e artistas de apoio a Serra, com afirmações do seguinte calibre: "Estamos com Serra porque ele sempre soube pôr o interesse publico acima das divergências pessoais, dos confrontos ideológicos e das rinhas partidárias. Serra é o novo porque não trapaceia para ganhar votos".
É como se dissessem, à la Romney: pobres, torçam pela chuva quando vier o fogo; clamem pela seca quando a vida ordinária naufragar no 'jardim
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